quinta-feira, 24 de março de 2011

Contra o fechamento do Curso de Obstetrícia da USP Leste



Nós, da Parto do Princípio, vimos por meio desta manifestar o nosso pleno apoio às ações pela manutenção do Curso de Obstetrícia da USP Leste.
A Parto do Princípio é uma rede de mulheres, consumidoras e usuárias do sistema de saúde, que oferece informações sobre gestação e parto baseadas em evidências científicas e recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Contamos hoje com mais de 200 pessoas trabalhando voluntariamente, em 21 Estados do Brasil, na divulgação dos benefícios do parto ativo e dos riscos de cesarianas desnecessárias.
Acreditamos que a mulher deve ser a protagonista de sua história e, assim, deve ter poder de decisão sobre seu corpo e liberdade de movimentos e de escolhas para dar à luz. Para tanto, no pré-natal, no parto e no pós-parto, a mulher precisa estar acompanhada por profissionais que, acima de tudo, estejam comprometidos com a fisiologia do nascimento e que respeitem a gestação, o parto e a amamentação como processos naturais e instintivos. Nesse sentido, foi com muita alegria que em 2005 acompanhamos a abertura do curso de Obstetrícia na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), no campus da Universidade de São Paulo conhecido como USP Leste.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a obstetriz com formação de nível superior representa boa estratégia para promover atenção adequada ao parto e nascimento. Essa profissional é capacitada para prestar assistência a gestações e partos de baixo risco e é bastante solicitada em muitos países desenvolvidos. No Brasil, seu papel é ainda mais relevante, diante das elevadas taxas de morbi-mortalidade materna e neonatal. Cabe lembrar que, a despeito dos avanços realizados na área da saúde, tanto o Estado de São Paulo como o país estão muito distantes de alcançar o Objetivo do Desenvolvimento do Milênio de número cinco, relativo à melhoria da saúde materna.
Extinguir o curso de Obstetrícia é um retrocesso e constitui desrespeito a toda a sociedade, na medida em que representa a manutenção do atual sistema de assistência, que apresenta elevada cobertura hospitalar, porém, resultados perinatais insatisfatórios.
Esperávamos que o Grupo de Trabalho para “Estudo das Potencialidades, Revisão e Remanejamento de Vagas nos Cursos de Graduação da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP” considerasse as evidências científicas sobre o parto e o nascimento e as experiências de outros países com bons indicadores de saúde materno-infantil. Contudo, cientes do conteúdo do relatório final do Grupo de Trabalho, observamos que os “problemas” apontados (destacados a seguir) não se sustentam.

“[...] problemas com os quais o curso convive e que impactam fortemente seu funcionamento”:

“O excesso de cesarianas que atingem principalmente os hospitais que compõem o sistema de saúde suplementar (considerados hospitais privados), onde em alguns deles as taxas de cesáreas atingem valores da ordem de 97%, indicador considerado ruim, pela OMS;”
• “A capacitação dos profissionais médicos para a realização de cesariana em detrimento de parto normal devido a múltiplos fatores (culturais, organizacionais, de qualidade de vida do profissional, econômica e outras);”

A OMS recomenda que os partos cesarianos não ultrapassem 15% dos nascimentos. Assim, se os hospitais privados exibem valores da ordem de 97% de cesáreas, trata-se de um dado alarmante, que demanda intervenção imediata. A formação médica focada na cesariana torna o quadro ainda mais preocupante. Diante disso, seria apropriado que as políticas públicas favorecessem e promovessem a atuação de profissionais aptos a prestar assistência adequada ao parto normal.

A lógica cultural vigente, adquirida pela população nas últimas décadas, a favor da cesariana, pois existe a crença que este procedimento oferece maior segurança. A mudança desta lógica necessitará de muito tempo e intervenções adequadas;

Diante da crença infundada de que a cesariana oferece maior segurança, seria adequado formar mais profissionais aptos a desmistificar o senso comum. Vale lembrar que a “lógica cultural vigente” é construída e realimentada diariamente com base nas experiências pessoais. Assim, para modificar tal “lógica cultural”, é preciso oferecer experiências diversas das que são possíveis atualmente.

A dificuldade de capacitação dos profissionais envolvidos com esta área devido à queda da natalidade;

Apesar da queda da natalidade, o modelo intervencionista vigente na assistência ao parto continua agredindo a saúde de mães e bebês. Ainda faltam profissionais capacitados para a assistência adequada ao parto normal. De acordo com o relatório de fevereiro de 2011 da Fundação Seade, um terço dos óbitos perinatais ocorridos em 2009 no Estado de São Paulo foi classificado como mortes reduzíveis com adequada atenção ao parto, 15,7% como mortes reduzíveis com adequado controle na gravidez, 14,2% como mortes reduzíveis com diagnóstico e tratamento precoces. Diante desse cenário, profissionais formados pelo curso de Obstetrícia têm papel fundamental e urgente não só no Estado de São Paulo, como em todo o país.

A “judicialização” da medicina onde, se algo não desejável acontecer no momento do parto, o questionamento dos familiares envolvidos é sempre com relação ao porque a não indicação de cesariana e a busca por ações judiciais para responsabilização dos profissionais e instituições envolvidos.

A solução para a judicialização da medicina não reside na extinção de uma carreira acadêmica. Entendemos que todo profissional de saúde deve garantir a segurança das pessoas que atende e, para tanto, suas práticas devem estar embasadas nas melhores evidências científicas disponíveis. Além disso, consideramos que todo profissional de saúde deve ser capacitado para dialogar e ouvir as demandas das pessoas que atende. No caso da assistência ao parto, é urgente que se estabeleça tal relação dialógica, em que a mulher e seu acompanhante recebam informações claras e acessíveis a respeito do ciclo gravídico-puerperal. Para os casos em que intervenções médicas sejam necessárias, a mulher e seu acompanhante devem igualmente receber informações claras sobre a natureza do procedimento e devem emitir seu consentimento livremente.

Sobre a aceitação dos alunos egressos pelos Conselhos de Enfermagem, existem decisões judiciais sobre essa questão. Não cabe ao COREN, COFEN, ou USP o posicionamento contra tais decisões. Tais entidades tampouco podem se recusar a acatar decisões da Justiça Brasileira.
Diante de todo o exposto, resta lamentar a falta de critério do Grupo de Trabalho, que redigiu seu relatório com base no senso comum e ignorou evidências científicas, experiências bem-sucedidas no exterior, recomendações da OMS, relatórios demográficos do Estado de São Paulo e o compromisso social da universidade.

A sociedade brasileira necessita urgentemente de melhorias na assistência à saúde materna, no sentido da humanização do parto e nascimento. Entendemos que as profissionais formadas no curso de Obstetrícia da USP Leste representam boa parte dessa demanda por melhorias. Deixamos aqui nosso apoio à continuidade do Curso de Obstetrícia da USP Leste, assim como de seu vestibular anual, com esperanças de que em pouco tempo essa seja também uma realidade de muitas universidades públicas e privadas de nosso país.

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